Os filiados e convidados presentes ao seminário “Assédio Moral e Gerencialismo no Serviço Público – A Receita Federal no contexto da desconstrução das Instituições de Estado”, promovido pelo Sindifisco Nacional e realizado na sede da DS/Rio, dia 7 de dezembro, saíram do evento enriquecidos pelo conteúdo informativo e a qualidade das análises técnicas, com reflexões sobre a implantação do modelo neoliberal de gerenciamento do serviço público brasileiro.
Esse ideário, pautado nas expectativas do “mercado” e nas premissas de geração de lucro da iniciativa privada, além de interferir na gestão e na estrutura organizacional das instituições, subverte o objetivo do serviço público, que é o atendimento às políticas voltadas para o bem-estar social.
No processo de implantação do “novo” modelo gerencial, calcado em métricas e metas de produtividade ascendentes, práticas inaceitáveis ganham corpo e se tornam ferramentas coercivas, com graves consequências para a saúde física e mental dos servidores e do ambiente institucional. Uma delas é o assédio moral, responsável por adoecimentos severos e atos extremos, como o suicídio.
A abertura do seminário foi feita pelos Auditores-Fiscais Tiago Barbosa de Paiva Almeida, 1º vice-presidente do Sindifisco Nacional, e Luiz Fernando Del-Penho, presidente da DS/Rio. Ambos destacaram a relevância do tema e agradeceram a presença dos colegas no auditório, bem como a participação online no evento, transmitido ao vivo pela TV Sindifisco.
Painéis – O seminário foi estruturado em dois painéis distintos, mas complementares: Panorama Socioeconômico e desafios de reconstrução do Estado Brasileiro e Gerencialismo e Assédio Moral na (des)construção do Estado Brasileiro.
O primeiro painel teve como palestrantes a Professora Juliane Furno, doutora em Desenvolvimento Econômico pelo Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), e o Professor João Cezar de Castro Rocha, docente Titular de Literatura Comparada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Os Auditores-Fiscais Tiago Barbosa de Paiva Almeida e Cleber Magalhães, diretor de Assuntos Jurídicos do Sindifisco Nacional e 1º vice-presidente da DS/Rio, abordaram as implicações do gerencialismo no serviço público.
Realidade objetiva – Na avaliação da economista, é essencial pensar na extensão do que foi destruído nos últimos anos, em termos institucionais e no âmbito das políticas públicas, bem como nas reais motivações desse desmonte. Partindo dessa reflexão, será possível pensar na reconstrução do país em condições mediadas pela realidade objetiva, com o Estado investindo na reindustrialização e foco na revolução energética.
O cenário socioeconômico de terra arrasada construído pelo governo atual impõe desafios gigantescos. Conforme Juliane Firmo, “mais de cem milhões de pessoas não comem todas as refeições diárias; 33 milhões vivem no limite entre a pobreza e a extrema pobreza; mais ou menos 30 milhões estão desempregadas, subempregadas ou desalentadas; a economia não cresce”.
A superação desses desafios exige capacidade política e, também, o apoio crítico das bases de sustentação do novo governo, além do enfrentamento vigoroso aos atos antidemocráticos. Nesse contexto, a pesquisadora espera “que o movimento sindical cumpra o seu papel e a luta política em defesa de um novo modelo de sociedade” brasileira.
Dissonância cognitiva – O professor João Cézar fez uma análise profunda do comportamento coletivo dos grupos de apoiadores do modelo de Estado derrotado nas eleições gerais de outubro.
Esses grupos são norteados por teorias calcadas na desinformação deliberada, inconsistência argumentativa e na manipulação dos fatos, difundidas através de redes sociais e aplicativos – como o Mano, que foi transferido para a Rússia, após as eleições. Na prática, esses indivíduos apresentam todas as características que fundamentam o conceito de dissonância cognitiva coletiva, descrito pelo psicólogo Leon Festinger como “um hiato entre uma crença e um comportamento”.
Consumindo exclusivamente os conteúdos dessa “midiosfera extremista”, os indivíduos são levados a um comportamento grupal irracional e não reconhecem a incongruência e as consequências dos próprios pleitos – como reivindicar a intervenção do governo no resultado das eleições, por meio de um golpe de Estado, o que constitui crime.
Para o docente da UERJ, o grande desafio é trazer essas pessoas de volta ao mundo real, tendo em vista o componente libidinal – de prazer – promovido pela alienação cotidiana desse ambiente virtual, constituído por teses e “profecias” que capturam o indivíduo sob a falsa noção de serem agentes das próprias ações.
História explica – O Auditor-Fiscal Cleber Magalhães fez uma breve contextualização histórica dos processos de produção da sociedade capitalista para iniciar o debate sobre o gerencialismo.
Do fordismo à produção em massa de bens de consumo, a indústria evoluiu tecnicamente para transformar em lucro até mesmo os conceitos, símbolos e ícones adotados pelos críticos do capitalismo. No pós-fordismo, o próprio sistema substitui a supervisão humana para determinar como as pessoas irão trabalhar.
A implantação no serviço público de um modelo gerencial proveniente da indústria impôs o falso argumento de que a superação da burocracia de Estado torna a prestação do serviço mais eficaz. Na prática, o que se enfrenta é a flexibilização, a multitarefa, a metrificação e a perda de autonomia, entre outros fatores.
Baseada em metas gerenciais que privilegiam quantidade e tempo de execução dos processos – e não a qualidade da análise técnica –, essa estrutura “empresarial” basicamente ignora a essência do serviço público, cujo objetivo prioritário é a promoção do bem-estar social.
O cumprimento de metas metrificadas, sem a compreensão dos seus objetivos, causa desconforto e, ao longo do tempo, angústia e sensação de ineficácia funcional. Conforme exemplificou o dirigente sindical, “a pessoa [ser obrigada a] fazer dez autos de infração de R$ 1 milhão, em vez de um único, no valor de R$ 1 bilhão, além de estar só com o seu trabalho, no ambiente remoto, sem colegas para trocar ideias”, amplifica o mal-estar. “Mais de 60% dos afastamentos são por questões de saúde – o trabalho se tornou insalubre”, enfatizou o Auditor-Fiscal.
Mal-estar – Seguindo a mesma linha de raciocínio, o Auditor-Fiscal Tiago Barbosa enfatizou o mal-estar no ambiente laboral, que hoje é perceptível no serviço público, e a necessidade de identificar e entender o que ocorre, dentro do contexto histórico.
Lembrou que o espírito do serviço público é fundamentado em três elementos básicos – dignidade em relação ao Poder, previsibilidade em relação ao tempo e serenidade em relação à remuneração. Portanto, é preciso fazer uma reflexão sobre “o que somos na estrutura do Estado brasileiro” e “o que significa a carreira típica de Estado”, sem “banalizar nossas atitudes”.
A fim de contribuir para a reflexão, o dirigente sindical lançou, ainda, uma provocação: “Será que o Estado neoliberal é o mesmo que o Estado mínimo”, questionou.
Assédio moral – O segundo painel tratou especificamente do assédio moral institucional, com palestra online do Professor José Roberto Montes Heloani, docente Titular e pesquisador da Faculdade de Educação e do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. Os Auditores-Fiscais Cleber Magalhães, Dão Real Pereira dos Santos, diretor Nacional de Relações Internacionais e Sindicais, e Nory Celeste Sais de Ferreira, diretora Nacional de Defesa Profissional, participaram da análise do tema.
“Assédio moral mata”, enfatizou o Professor José Heloani, logo no começo de sua exposição sobre o tema, que é um dos seus objetos de estudo. Segundo ele, não se trata de avaliar “uma luta de pessoas num departamento”, mas sim, de entender o Estado brasileiro.
Para começar, alegam um “inchaço” inexistente na máquina pública do Brasil, que tem somente 1,6% da população composta por servidores públicos. Em contrapartida, nos Estados Unidos, país considerado modelo de economia pelos neoliberais, 15,3% da população atuam no serviço público. Estudando o tema há mais de 25 anos, o pesquisador constatou que o problema principal está na forma de organizar o trabalho, e não nos servidores.
Do ponto de vista laboral, as metas inalcançáveis esgarçam as relações entre os colegas – e, por consequência, as relações afetivas, tão relevantes na constituição identitária, e que são gestadas, em sua maior parte, no local de trabalho. Assim, o assédio moral gera ideias suicidas pela falta de afetos.
A gravidade do tema e seu caráter universal levaram a OIT (Organização Internacional do Trabalho) a instituir a Convenção 190, que amplia a abrangência da proteção contra o assédio a qualquer pessoa que tenha acesso ao ambiente de trabalho – incluindo os usuários dos serviços ali prestados.
O professor Heloani destacou a importância das entidades sindicais e associativas no apoio àqueles que sofrem o assédio, pois “enfrentar o mal institucional sozinho é estar à mercê do fracasso”. Segundo ele, trata-se também de uma questão política, que deve ser resolvida do ponto de vista institucional – “quando há uma constância, não se pode dizer que não seja assédio”, destacou.
O pesquisador lembrou que a “dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República”, sob a égide da Constituição. Portanto, “não é possível ter relações de trabalho indignas”, permeadas por desqualificações e descréditos. Afinal, “todos temos o direito de trabalhar num ambiente saudável que gere afetos em nossas lembranças”, finalizou.
Gestão pelo desconforto – O Auditor-Fiscal Dão Real apresentou suas reflexões sobre gerencialismo e assédio moral conectando as questões, pois entende que o assédio institucional é um método de funcionamento de determinado tipo de administrador – o método de gestão pelo desconforto, que parte de um processo de enquadramento vertical.
Dão Real entende o gerencialismo como um método pensado para Estados que não têm políticas públicas. Por isso, alerta para o risco da PEC 32 (Reforma Administrativa), que inclui o princípio de subsidiariedade na administração pública. A proposta do atual governo é trazer para dentro do Estado técnicas de gerencialismo da iniciativa privada, onde um gerente determina o que será feito. E, a partir de um gerencialismo privado, “não há outro caminho a não ser o Estado mínimo, porque se interfere e inviabiliza o estado de bem-estar social”, afirmou o Auditor-Fiscal.
Ele destacou que, “antes de arrecadar, é preciso ter justiça fiscal, interpretar corretamente as leis levando em conta os princípios da Justiça”. Por outro lado, nesse modelo gerencial que buscam implantar, ocorre a desconexão da execução com a finalidade – e a pessoa se torna um mero executor. Tal modelo também aponta para um tipo de organização do Estado em que “podemos estar contribuindo para inviabilizar a Constituição”, a partir do momento em que outros determinam o trabalho a ser executado.
Para Dão Real, os Auditores-Fiscais precisam resgatar a conexão a partir da cooperação, se apropriando do que fazem, com referência na Constituição e nas leis, pois “a ausência da noção e do controle sobre o que se faz dificulta sustentar o reconhecimento de autoridade de Estado”. Além disso, a máquina pública não pode ficar a serviço dos interesses privados. “Tributar os pobres, os bancos já o fazem. Precisamos de autoridade para tributar os ricos”, afirmou.
Por fim, alertou os colegas para a tendência ao que denomina de “uberização” do trabalho fiscal – numa alusão à metodologia de trabalho nesse segmento, onde só ganha quem está com o carro em movimento. “Assinar a folha-de-ponto atesta a assiduidade. Mas, agora, os colegas precisam justificar, cada dia, o que eles fizeram pela RFB; se não, justificam no dia seguinte. [o risco] quando o controle deixar de ser somente de atividades, é deixar de ganhar, no dia em que não fizer uma atividade”.
Culpa da vítima – Ponderando brevemente sobre as implicações do assédio moral, o Auditor-Fiscal Cleber Magalhães considerou que tal prática é instrumento de corrupção e envolve disputas de poder, inveja e cobiça. Por isso, atinge diretamente o trabalhador que resiste à padronização e se recusa a deixar de lado a qualidade do seu trabalho. Ou seja, a culpa é da vítima!
Cleber aconselha os colegas a exporem tais situações, lembrando que o debate sobre assédio moral começou com os sindicatos, muito antes de se parar na Justiça.
Sem legado – A Auditora-Fiscal Nory Celeste externou a preocupação com o envelhecimento da Receita Federal do Brasil, onde a idade média de ocupantes do cargo é de 54 anos. “Isso também é uma forma de assédio, porque não se tem a quem passar nossos conhecimentos, histórias e construções, as lutas para defender o cargo… não tem ninguém lá para ouvir”, lamentou.
Nory também propôs uma reflexão sobre a necessidade de reconstrução da Nação e da Administração Tributária da RFB, a fim de se oferecer instrumentos para a reconstrução do Estado brasileiro. E, ainda, trabalhar com a formação técnica no Sindicato.
Outros pontos preocupam a Auditora-Fiscal, entre os quais: solidão e isolamento – físico, técnico e emocional – do trabalho remoto, que dificulta a formação de laços e de identidade profissional; dissociação entre o trabalho e o sentido do trabalho, o que causa mal-estar e sofrimento no trabalhador, como reflexo da desestruturação; o desmonte da Administração Pública; o assédio moral como ferramenta gerencial para fragilizar e obrigar as pessoas a “andarem na linha”.
“A perda do sentido do trabalho gera sofrimento. A quem servimos?”, questionou Nory Celeste, que vê o desmonte institucional como o legado do período neoliberal e considera essencial “resgatar a defesa intransigente do serviço público”. A dirigente sindical propôs que o Sindicato encaminhe uma reflexão sobre como os Auditores-Fiscais podem colaborar para essa (re)construção.
Finalizando a participação e o seminário, Nory incentivou os colegas que estiverem em sofrimento por causa do trabalho a procurarem ajuda no Sindicato, onde a prioridade será o acolhimento e, em seguida, a orientação jurídica.
Fotos: Sindifisco Nacional/Ricardo Klem e Jornalismo DS/Rio